15 de abril de 2011

A MÁQUINA


É por estes anos que o teu trabalho de ministrar formação de informática se intensifica, estou sentado no mesmo "escritório" com vista para a rua, onde tantas horas passaste com a responsabilidade da preparação do teu trabalho para cada dia seguinte. Começavas a dar formação a quadros superiores de empresas e eu inadvertidamente queria provocar pausas no teu trabalho em serões pela noite dentro, e tu não mo permitias.
Se valeu a pena profissionalmente para ti ou para nós, hoje perante o fim da nossa caminhada, choro de alguma forma o tempo que te foi roubado.

A única alternativa, era brincar com o tipo de trabalho. Desculpa as vezes que fui importuno, só via o teu esforço e não os teu receios de enfrentar os touros.

14 de abril de 2011

NATAL IMPREVISIVEL

Trabalhava eu por turnos na Radio, e nessa noite a minha saída era às 02:00h da manhã, apanhava o último comboio às 02:30 e chegaria a casa às 03 horas.
Tu tinhas ido trabalhar, embora tivesses saído mais cedo. Foste buscar a menina ao colégio e deves ter começado a tratar dos preparativos para uma noite de Natal a três.
Ora o previsto era que próximo das duas começarias a cozinhar o bacalhau, batatas, couves, o habitual desta noite... A menina estaria a dormir e acordaria, conforme a sua vontade para confraternizar e abrir as suas prendas.
Respeitava-mos muito os horários da criança, mesmo abdicando de alguns prazeres para nós.
Não havia telemóveis neste tempo.
Algum frio da época e uma viagem de comboio com muito poucos passageiros algo "tristes", mas eu ansioso de chegar, porque sabia que ia ter como sempre uma maravilhosa companheira à minha espera para uma noite de carinho, como tantas outras mesmo quando não era natal; ia pensando nas cores dos embrulhos para haver uma distribuição equitativa com a nossa filha pequenina.
Abro a porta, e vens ao meu encontro com o ar mais triste deste mundo, afogada num desânimo que parecia que não teres força para estar em pé.
Mais tarde compreendi que este desânimo deveu-se ao facto de saberes que o Natal para mim era a festa do ano mais importante, não por eu ser ou não ser católico, mas porque tinha sido o meu ninho de sonhos em criança esperando pelas prendas que nunca vieram.
Céus... com uma quantidade suficiente de guloseimas, as frutas secas, bolo-rei, havia pão, marmelada, nozes, pinhões ou seja de tudo um bocadinho, nem que fosse só para desogar... porque havia-mos de ficar assim tristes?
O que aconteceu ?!... Estava combinado que próximo das duas começarias a cozinhar, para quando eu chegasse estar quase pronto. Mas fatalidade das fatalidades o Gás de garrafa acabou-se...
Se calhar tinha mesmo que ser assim, porque ficou a ser um Natal com "sabor" diferente e durante anos foi acontecimento de referência nas nossas conversas natalícias. Creio que consideravas que me ia sentir talvez muito afectado.
Então acordamos que tinham que ser quebrados todos os nossos rituais, senão a coisa não ficava bem.
Primeira decisão; vamos comer no chão.
Segunda como o bacalhau estava quase cozido (o gás podia durar mais um bocadinho..) vamos fazer esfiado com azeite e cebola. E o resto prossegue normalmente.
Claro que no meio disto a menina já tinha acordado, teve manifestações de espanto por ver comida no chão em cima da toalha que anteriormente tinha visto na mesa; e a situação ia ficando complicada porque a criança não se apercebia que não podia andar em linha recta, devido à falta de um "generoso" espaço porque estávamos num apartamento J.Pimenta.
Acesas as velas, nós aconchegando o estômago com o singular bacalhau, a criança "petiscando" as doçarias lá fomos criando a nossa noite de Natal, a mulherzinha recuperando do seu desgosto, culminando num rir de felicidade pela forma como as coisas decorriam.
Alegria que aumentou com a distribuição das prendas entre os três, que se prolongava sempre, porque havia necessidade de dar oportunidade aos afectos e à apreciação das coisas neste caso principalmente dos brinquedos.
Até que que a criança foi viajar nos seu sonhos e nós... nós fumamos mais alguns cigarros, mais um copo de qualquer coisa e mais um copo de sumo, talvez mais uns pinhões, o volume do som da  televisão muito baixinho. Concluímos que tudo tinha sido bom e diferente porque nos amava-mos.
E neste Natal, cada um de nós foi tudo o que o outro quisesse que fosse.
Até breve amor.

Ps. A menina é a tua mãe...Guilherme

 

12 de abril de 2011

CULTURA E PROTECÇÃO



Decorria a Feira do Livro, na Avª da Liberdade. Ainda estava sedento de ler e conhecer o que havia de novo que tivesse sido publicado durante a minha permanência na Guiné.
Fora das horas do trabalho na Rádio e como estava hospedado muito perto, numa pensão na Pçª dos Restauradores a feira era o meu local preferido.
Estava uma tarde bonita de sol, creio que era um sábado ou domingo, havia muita gente.
Gostava de ter outra tarde igual... livre da guerra, da opressão, com alegria, recém-independente economicamente, e o tipo de trabalho de que sempre gostei.
Tinha ainda os reflexos da Guiné com a minha estadia hospitalar. Mas nessa tarde no meio da minha busca de novos livros, todos os resquícios do passado, todas as ansiedades do meu inicio de vida como jovem homem se evaporavam.
Durante estes anos me interroguei algumas vezes, se foste tu ou a criança, que era a tua filha que "apelaram" a todo o amor que eu tinha para dar um dia a alguém.
Recordo quando na Feira do Livro, eu ia a descer a Avª no passeio interior do lado dos automóveis e o meu olhar capta de repente uma menina pequenina a caminhar muito ligeira, também pelo passeio abaixo. Observo-a e de repente no meu entender ela estava aproximar-se muito do limite do passeio e corri para ela para a deter. Olhei para os lados para ver quem estaria com a criança e tu estavas mesmo ali ao meu lado, mesmo juntinha a mim.
Creio que me senti acabrunhado. Afinal... havia alguém tão atento ou mais que eu. Porém não tinha reparado em ti, a Mãe estava presente.
Lembro-me de ter oferecido à menina algo da feira, que não me recordo.
Não sei exactamente do que conversamos (talvez da revolução e livros) e caminhamos juntos o resto do percurso com a Susaninha no nosso meio até aos Restauradores onde nos separamos. Tu foste para o comboio e eu para a Rua Capêlo, para a Radio.
Quem eras tu ?! Só fiquei sabendo que trabalhavas numa Editora, tinhas uma filha com três aninhos, residias na linha de Sintra, e deixaste-me a impressão seres de "esquerda" e... mais nada.
Por minha vez não te terei dado muitos elementos, pela "complexidade" do meu percurso de vida, que afinal era tão complexo como a teu, não o sabendo nós nesta altura. Ficaste com o essencial de mim, não te disse muita coisa, quanto mais não fosse porque olhava para ti e eras uma jovem bonita que me dava o impulso de atrair a tua atenção, mas ao mesmo tempo olhava para a Susaninha e já te via como uma mulher mais madura com outras responsabilidades.
Foste, o MEU ENCONTRO COM O AMOR que me acompanhou sempre em todos os momentos bons e maus.
Quando eu estava a começar a "estrada da vida" como adulto, inspiraste-me respeito mesmo na tua simpatia, digamos que este casual encontro contigo me provocou receio de tentar sequer namoriscar além de não deixar de pensar na menina e em ti como uma só pessoa.
Ficou combinado nas despedidas que me contactarias. Sabias o meu nome e o número da rádio, era fácil.
Até breve meu amor.

11 de abril de 2011

( II ) - SONHOS, VENTURAS E OUTROS QUE TAIS

Vinte anos de idade (1970), aproximam-se os dias da decisão que terei de tomar. Ou seja os dias da Inspecção Militar.
Vou reforçando a minha própria segurança, destruindo ou facultando a outros, material em minha posse, como documentos, recortes, livros, mais comprometedores.
Deixo os lugares mais recatados e começo episodicamente a conviver mais "brejeiramente".
Procuro conhecer as de-marches da realização de uma inspecção militar, sobre a ida para um quartel.
Fico a conhecer mais detalhadamente, casos de vários estudantes universitários obrigados a interromperem os estudos para ingressar nos contingentes para as colónias, o que me desperta o desejo de estar junto a eles. Mas tratava-se de um imaginário meu, não sabia como.


Começam as conversas com algum grau de risco, com os amigos mais íntimos, no fundo procurava o suporte à decisão, (que não foi a final), que eu naquele momento desejava tomar.
A deserção. Para além das opções políticas, outros factores se me apresentam e influenciam.
O afastamento das pessoas que eu mais amava na vida, minha Avó e minha Mãe. Sendo verdade, que na altura e recentemente, minha Mãe tinha-me dado a conhecer o carácter colonialista e escravizador daquele que foi meu pai, durante muitos anos em Moçambique na ex-Lourenço Marques, pai que não cheguei a conhecer e sendo a causa da separação do casal.
Com a deserção implicava consequentemente o apelo à minha coragem com destino ao desconhecido e em absoluto ainda insensorial.
Renovam-se conversas com amigos íntimos e mais "seguros" (um não implica o outro tipo de personalidade) que ganham novos contornos e outras abordagens. Diversas novas condições e objectivos se me apresentam entretanto com a consciência política adquirida até aquele momento, durante a juventude, em substituição do futebol e da abstracção política e social que a maioria dos jovens padeciam, face ao fascismo existente, mas que lentamente a juventude começava a despertar da letargia.
As alternativas naquele momento eram:
Deserção pura e simples.
Ou frequência da recruta e depois desertar, com o objectivo de adquirir instrução e conhecimentos militares, com vista a vir a integrar grupos de acção revolucionária.
E ainda, enquanto não embarcasse, obter informações, produzir agitação política, nos quartéis.
A minha opção final e pessoal (mais uma vez neste campo) foi que ingressaria as fileiras e embarcaria para as colónias, se mobilizado, onde levaria à prática o que me fosse possível.
Tendo-me atribuído, independentemente dos riscos que acarretava e como primeiro empenho, dar a conhecer para o exterior todos os factos e movimentos de relevo do interior dos quartéis, incluindo cópias ou transcrições e na medida do possível outros materiais. Que veio a ser inicialmente em RI7 na cidade de Leiria, unidade onde fiz a recruta.
E no caso de embarcar para as colónias (que veio a ser para a Guiné), procurar contactos com a população afecta aos movimentos de libertação e dar a conhecer as lutas que se travavam em Portugal contra a guerra colonial e a ditadura. Facultar o conhecimento sobre o exército colonial, e informando para Portugal do que tinha conhecimento no aspecto político-militar e outros.
Não obstante todos os medos, todas as angustias, creio ter concretizado grande parte dos objectivos a que me tinha proposto. Concluo eu hoje, até ao meu último dia de hospital militar.
p.s. Nunca utilizei nenhuma informação de operacionalidade pontual, que pusesse em perigo qualquer militar, fosse ele quem fosse.

(continua)

( I ) - SONHOS, VENTURAS E OUTROS QUE TAIS

Uma adolescência "privilegiada" em relação à generalidade da juventude, no afecto familiar que era o amor de minha Avó e de minha Mãe, com a protecção e compreensão dos caminhos que eu trilhava até a pouco depois do 25 Abril, altura posterior que em datas diferentes, também elas iniciaram outro caminho dito eterno.


Somente já adulto, compreendi quanto as sujeitei a grandes sustos e ansiedades, mesmo até duas ou três semanas antes desta data, estando eu felizmente a trezentos quilómetros de distância na R. Renascença em Lisboa. Privilegiado no acesso à cultura, na experiência do contacto com diversas camadas sociais da população que me rodeava. Para quem conhece a Foz do Douro, no Porto, era entre pescadores, marinheiros, operários fabris e a zona aristocrática da burguesia de banqueiros, grandes industriais etç.

                                           (sou o do meio com uma Rola)

Escrever sobre estes pormenores seria muito extenso e não é objectivo agora.
Neste percurso de adolescência até aos dezoito anos sempre me foram transmitidos os valores de meu Avô materno. Marinheiro de coragem e participante em revoltas, e quando em terra, hostil às injustiças. Morreu no mar, sob a bandeira inglesa, quando num "comboio de reabastecimento" seu barco foi bombardeado por um submarino alemão.
Aos dezoito anos (1968), eu estava empenhado em todos os meios culturais ao meu alcance (poucos e perigosamente criados) e que me eram disponíveis.
As longas conversas tidas em não menos longas caminhadas pela marginal junto ao mar, na Foz , até meio das madrugadas, forma de não ser-mos escutados, ajudava-nos a desenvolver as nossas concepções, a nossa forma de ver o mundo, e levar à prática formas de luta e resistência, ao que nos oprimia a cada dia.
A exploração, a guerra e a falta de liberdade.
Nos cafés mais "seguros", na casa de amigos, onde ouvia-mos música mesmo a editada clandestinamente, "filosofava-se" e lia-mos tudo que chegava às nossas mãos, trocava-mos os livros e papeis proibidos e raros que nos chegavam.
Em alguns locais policopiavam-se outros.


Nos finais deste período, a minha integração nas já existentes e criação de novas "comissões culturais" em colectividades, cooperativas e até filarmónicas, tinha como objectivo, promover hábitos de leitura com outra imprensa como Diário de Lisboa, República, Comércio do Funchal, promover troca de impressões sobre os acontecimentos mais ou menos públicos, realizar colóquios com Óscar Lopes , Armando Bacelar, Armando de Castro e outros intelectuais, sobre economia e política mais abrangente. Com músicos de Jazz. Realização de momentos com música (as baladas da época) e peças de teatro como a Guernica de Brecht, que sonorizei. Claro tudo isto sob os olhares da Pide-DGS, que esperava avidamente a presença de "caça grossa" nesses locais.
Com este plafon, chego à condição de Mancebo, nobre designação de carne para canhão.
Novas e mais importantes (individualmente) opções se me colocam.
Desde a deserção, até à permanência nas fileiras. Opções que por muito individuais que fossem, só poderiam ser levadas a cabo, enquadradas e/ou organizadas, face à minha maneira de estar na luta e concepções políticas, Leninista com influencias de Che Guevara, Mariguela e outros da luta revolucionária activa.

(Continua)