Trabalhava eu por turnos na Radio, e nessa noite a minha saída era às 02:00h da manhã, apanhava o último comboio às 02:30 e chegaria a casa às 03 horas.
Tu tinhas ido trabalhar, embora tivesses saído mais cedo. Foste buscar a menina ao colégio e deves ter começado a tratar dos preparativos para uma noite de Natal a três.
Ora o previsto era que próximo das duas começarias a cozinhar o bacalhau, batatas, couves, o habitual desta noite... A menina estaria a dormir e acordaria, conforme a sua vontade para confraternizar e abrir as suas prendas.
Respeitava-mos muito os horários da criança, mesmo abdicando de alguns prazeres para nós.
Não havia telemóveis neste tempo.
Algum frio da época e uma viagem de comboio com muito poucos passageiros algo "tristes", mas eu ansioso de chegar, porque sabia que ia ter como sempre uma maravilhosa companheira à minha espera para uma noite de carinho, como tantas outras mesmo quando não era natal; ia pensando nas cores dos embrulhos para haver uma distribuição equitativa com a nossa filha pequenina.
Abro a porta, e vens ao meu encontro com o ar mais triste deste mundo, afogada num desânimo que parecia que não teres força para estar em pé.
Mais tarde compreendi que este desânimo deveu-se ao facto de saberes que o Natal para mim era a festa do ano mais importante, não por eu ser ou não ser católico, mas porque tinha sido o meu ninho de sonhos em criança esperando pelas prendas que nunca vieram.
Céus... com uma quantidade suficiente de guloseimas, as frutas secas, bolo-rei, havia pão, marmelada, nozes, pinhões ou seja de tudo um bocadinho, nem que fosse só para desogar... porque havia-mos de ficar assim tristes?
O que aconteceu ?!... Estava combinado que próximo das duas começarias a cozinhar, para quando eu chegasse estar quase pronto. Mas fatalidade das fatalidades o Gás de garrafa acabou-se...
Se calhar tinha mesmo que ser assim, porque ficou a ser um Natal com "sabor" diferente e durante anos foi acontecimento de referência nas nossas conversas natalícias. Creio que consideravas que me ia sentir talvez muito afectado.
Então acordamos que tinham que ser quebrados todos os nossos rituais, senão a coisa não ficava bem.
Primeira decisão; vamos comer no chão.
Segunda como o bacalhau estava quase cozido (o gás podia durar mais um bocadinho..) vamos fazer esfiado com azeite e cebola. E o resto prossegue normalmente.
Claro que no meio disto a menina já tinha acordado, teve manifestações de espanto por ver comida no chão em cima da toalha que anteriormente tinha visto na mesa; e a situação ia ficando complicada porque a criança não se apercebia que não podia andar em linha recta, devido à falta de um "generoso" espaço porque estávamos num apartamento J.Pimenta.
Acesas as velas, nós aconchegando o estômago com o singular bacalhau, a criança "petiscando" as doçarias lá fomos criando a nossa noite de Natal, a mulherzinha recuperando do seu desgosto, culminando num rir de felicidade pela forma como as coisas decorriam.
Alegria que aumentou com a distribuição das prendas entre os três, que se prolongava sempre, porque havia necessidade de dar oportunidade aos afectos e à apreciação das coisas neste caso principalmente dos brinquedos.
Até que que a criança foi viajar nos seu sonhos e nós... nós fumamos mais alguns cigarros, mais um copo de qualquer coisa e mais um copo de sumo, talvez mais uns pinhões, o volume do som da televisão muito baixinho. Concluímos que tudo tinha sido bom e diferente porque nos amava-mos.
E neste Natal, cada um de nós foi tudo o que o outro quisesse que fosse.
Até breve amor.
Ps. A menina é a tua mãe...Guilherme